Todos conhecemos da mitologia Arturiana a célebre história de Excalibur, a espada cravada numa pedra que apenas seria possível ser retirada pela pessoa escolhida como certa para se sentar no trono e comandar um país. A lenda tem muitas complexidades, mas é a ideia de um eleito predestinado a cumprir um mito fundador que aqui nos interessa.
Ao entrarmos na exposição um par de pernas improvisadas em materiais frágeis, encarcerados numa pedra (de plástico), emulam a posição da famosa espada que Rei Artur teria retirado da pedra. A peça tem por título Excalibur (Safe place), 2018 e introduz-nos ao espectro multidimensional de insinuações e alusões que motivam a prática de Fernão Cruz (Lisboa 1995). Esta peça pode ser vista como um ponto de admissão a esta exposição, que teve como antecâmara um projeto individual exposto recentemente em Xabregas intitulado “A segunda estrela à direita”.
Nesse breve caso, Fernão mostrou uma instalação de sete “pinturas” fundidas a alumínio: um cavalo num pedestal (estátua equestre), uma cama, uma bandeira, uma cápsula aberta, um escadote para chegar às nuvens, pá, vassoura, faca e tabletes de comprimidos, um par de luvas. Foi sob os auspícios de Peter Pan (o menino que não queria crescer, e que a psicanálise já se encarregou de responsabilizar vezes sem conta), que Fernão nos introduziu à excentricidade da sua prática artística, obliquamente focada nas nomenclaturas mais reconhecíveis das estruturas da sociedade ocidental. Esta pequeno princípio, em “A segunda estrela à direita”, tem tanto de sarcástico como de introspetivo, e é a partir desta condição que podemos entrar nesta história longa, sem demoras. Excalibur (Safe place) é literalmente uma “pedra de toque” porque nos abre a porta a um lugar encapsulado entre a infância que não se quer ou pode deixar (e essa infância pode ser a infância pessoal ou artística, com a diversas conflitualidades resultantes dessa condição ou da sua recusa), e a idade adulta, na qual Fernão imagina ninguém estar a salvo.
A pedra em Excalibur é um esconderijo, onde à falta de melhor lugar se permanece até chegar o momento inevitável em que se sai porque o caminho está livre ou porque fomos descobertos. O célebre truísmo “protect me from what I want” pode aqui ser corrompido para “protect me from what I am”.
Em volta, um tacho com uma pintura negra embutida – Untitled (pot with black painting) - , uma pintura de uma planta sobre um chão azul perpendicularmente embutida numa parede – Table with plant on blue floor - uma pintura de uma arma metralhadora em posição vertical, irónica e icónicamente intitulada Mommy, Red chair (auction house) uma pintura de um cadeirão que funciona como um astuto comentário às relações de poder que um objeto utilitário pode sugerir, ainda uma peça construída a partir de um conjunto de pequenas pinturas acopladas de título Family is together, ou uma pequena escultura verde que (nos) derrete, ou naufrága, num mar de dúvidas – Untitled (green painting). No chão, um espirituoso cumprimento matinal, Good morning! que funciona como desbloqueador de conversa e põe toda a família a falar; uma pequena pintura de um sol amarelo que desponta sobre um plano azul e que está encostada a um haltere. O estado de espírito desta pequena pintura lembra-nos ‘Rising moon’ de Hans Hofmann. Há uma infinidade de vozes a soar nesta sala - uns são família, outros são convidados.
Será que ainda estamos no território da pintura? A diversidade de estilhaços visuais que Fernão usa para compor as suas peças é procedente de uma muito bem definida tradição da pintura, embora esta apareça em retalhos, resgatados à força a essa história que conhece, e que lhe serve de fundação: uma estrutura que suporta um pensamento e uma construção em progresso, denunciado pelo chão da galeria que aparece revestido de um material provisório que a protege das agressões inesperadas de uma obra em curso. Em Calico World Kracauer descreve como encontrou os adereços e figurantes de cinema nos estúdios UFA em Neubabelsberg, esse sítio onde “tudo é garantidamente não natural e tudo é exatamente como na natureza”: “Eles esperam indeterminadamente pela sua cena. Existem muitas dessas cenas, juntas como as pequenas pedras de um mosaico. Em vez de deixar o mundo no seu estado fragmentado, podemos reconstituir um mundo a partir destas peças. Os objetos que foram libertados do seu contexto comum são agora reinseridos neste, o seu isolamento eliminado, e as suas feições suavizadas. Em sepulturas que não devem ser levadas a sério, estes objetos acordam para uma ilusão de vida.” 1 Aqui estamos perante um conjunto de obras muito recentes que estipulam um ecossistema de sinais - pessoais, domiciliários, familiares, profissionais e societais - que são contexto basilar deste modo de pintura, que joga com a organização das estruturas psico-sociais que sustentam a vida e que se imaginam em contínuo ao tráfego vital, como esses adereços de que fala Kracauer.
Descemos um piso e encontramos uma mala de viagem com uma pintura integrada através de um rasgo longitudinal - Rock bottom (crawling towards hard beauty), 2018 – a pintura figura uma lata de tinta a transbordar em ressaltos e salpicos. Sugere-nos naturalmente uma viagem, mas uma viagem que aqui se adivinha metafórica para a condição intermediária da pintura para com a decorrência da vida. E a mala e a viagem, reunidas nesta irónica pintura acerca de pintura, ecoam as viagens que Cezanne empreendeu e que Walser tão bem descreveu:
“Ele passava horas, dias, a tornar o evidente incompreensível, a encontrar para lugares comuns um fundamento inexplicável. Com o tempo, ganhou uma perceção apurada, decorrente do múltiplo vaguear exato pelos limites, que se tornaram para ele algo misterioso. Durante toda a sua pacata vida travou uma batalha silenciosa e, sentimo-nos tentados a dizer, muito nobre, no sentido de tornar o limite acidentado, se assim o podemos dizer.
A sua ideia é que um território acidentado é mais vasto, mais rico.
Segundo consta, a sua mulher tentou, por diversas vezes, convencê-lo a retirar-se desta batalha que possuía
algo de quase ridículo e a ir viajar.
Ele respondia: “Com muito prazer! Posso pedir-te que me prepares uma mala com tudo o que necessito?”
Ela acedia ao pedido, mas ele não viajava, ficava, andava novamente de volta dos limites dos corpos que representava, cuja imagem reproduzia, e ela pegava de novo naquilo que tinha arrumado, de forma tão cuidadosa quanto pensativa, retirava-o do cesto ou da mala e tudo era de novo como antigamente, sendo constantemente renovado por este sonhador.” 2
Neste sentido podemos especular que aquilo que está aqui em construção é um teorema acerca das trocas entre os contornos da vida e os limites da prática artística.
No seu romance f. (1989) Jutta Koether explica-nos, através da fala de um narrador feminino com o qual identificamos a própria artista que:
“Quando olho para uma pintura, fico no mínimo atormentada com preocupações. Vejo o horror permanente das pinturas, a sua beleza perene. E se estou perante uma boa pintura, percebo que esta escolhe as suas cores, escala, e as suas formas. As boas pinturas, mesmo quando pressagiam a destruição da arte, são a razão pela qual as pinturas podem e devem continuar a ser feitas. Estas podem também ser objetos, ou uma vida, ou escrita, ou, especialmente, música. Há destas pinturas por toda parte, espalhadas. Há uma tal abundância de pinturas. E há também as pinturas destas pinturas, e milhares de ligações e cortes, e as articulações, e as complicações – fico atordoada só de pensar. Basta pensar nelas e fico desconcertada. Mas não hesito porque estou entregue à radiante tarefa de sistematizar todas estas ligações. E sei o quão luminosa é esta sistematização, uma vez que o sistema carrega dentro de si mesmo as suas próprias fronteiras, apenas exigindo que seja propagado; quão belo é por existir uma sistematização dos limites do sistema e que tudo regressa a este outra vez, em simultâneo reivindicando as pinturas e respondendo a estas, por sua vez imaginando de novo em novas pinturas. É isto que as pinturas são.” 3
Neste sentido, o teorema que é aqui proposto enquadra-se nessa possível integração da vida pela pintura, e na tentativa de relacionar as definições e as demarcações de cada uma destas como se não fosse concebível uma separação absoluta, mas que a possibilidade fosse a de uma cadeia infindável de ligações, articulações e cortes que permitam perceber onde vai a vida quando esta é abordada pelo risco. Os seres e os objetos que povoam esta configuração de pedaços, encontram-se para conversar acerca de tudo o que é extensível ao mito, pois entra-se no mito quando se entra no risco, e esta proposta é acima de tudo acerca dos perigos desses encontros. Há perigo à vista e esse perigo é o de não ser possível vislumbrar onde começa o fluxo de ligações, nem onde termina, por ser impossível apurar o lugar exato dos cortes.
Danto nota o desaparecimento da regra como substrato maior da prática da pintura: “Se ‘no hay reglas en la pintura’ (como defendeu Goya), não há regra contra usar a pintura com o propósito de “apontar um espelho” às inumeráveis fraquezas e tolices que encontramos em qualquer sociedade civilizada.”4
Neste piso da galeria está disperso um corpo de trabalho que observa as regras mais básicas da pintura, e que ao mesmo tempo assume a posição de dupla autocrítica.
Under the ceiling, 2018 representa um ferro de engomar roupa, o título aproxima-o da sua função utilitária, mundana, caseira, de uma certa familiaridade e conforto burguês, mas os seus ecos metafóricos vêm de vários pontos. Do célebre ‘Cadeau’ de Man Ray até aos objetos da sociedade de conforto de Haim Steinbach, o que parece é que Fernão Cruz aproxima perigosamente a sua prática da pintura do memorando de Lawson5 quando este percebe que a pintura passa a ser a partir dos anos 1960 o veículo menos apropriado para abordar a perversidade cínica da sopa cultural em que o ocidente se havia tornado.
Esta pintura multiplica, com a série de quatro pinturas The beehive and bad behaviour, #1,#2,#3,#4, de 2018, e ainda com Kanguru, também de 2018, essa aproximação a uma certa modalidade de relacionamento irónico da pintura com a vida.
Pinturas de formatos estáveis e francamente institucionais que enfatizam as ligações de sangue à tradição da pintura abstrata e uma outra ligação, abertamente umbilical, declarada pela bolsa marsupial que compõe a pintura Kanguru, e que é uma tautologia ao próprio plano da pintura e à forma como trata capciosamente a estrutura pictural reminiscente de um certo cubismo de camuflagem e o seu dispositivo de deturpação, ou de estratégia desconstrutiva, concebida para debilitar as certezas da pintura em moldes clássicos - a figura paternal do virtuosismo.
E por falar em figuras paternas, encontramos ali logo no enquadramento deste conjunto de pinturas a peça Dad? de 2018, a vincar essa afinidade desconcertante, ora com uma figura familiar, ora com as relações de familiaridade à própria história da pintura. Se a mãe toma a forma de uma metralhadora em posição vertical, caracterizando uma verticalidade incomum na representação feminina na história da pintura, por sua vez o pai é narrado como um white collar handyman: um escadote, calçado com umas botas usadas e sujas de tinta e uma pintura de um busto sem rosto, de pernas para o ar, embutida no degrau cimeiro. Há uma enorme afinidade entre este faz-tudo familiar e a condição da pintura que nos é proposta como uma construção em curso; somos novamente convocados a produzir uma ponte entre o chão da galeria, pronto a receber os trabalhos de uma qualquer obra, e a identificação da figura parental (da família e das histórias pessoais e coletivas) como reduto das possibilidades da reconstrução e progressão da pintura.
Espalhadas pelo espaço destas confluências encontramos Grandma’s Special Pudding, uma pequena escultura de parede que é uma acoplagem de materiais domésticos que traz para o olho da tempestade outro elemento da família, sorrateiramente a fazer troça de tudo e todos, mas que morfologicamente assenta que nem uma luva nas características formais da pintura de Fernão; Small landscape with grass é uma pintura monocromática que a par de Apologizing Studio (Vija Celmins’ makeup mirror), uma escultura que - citando o trabalho de uma artista implicada num aturado processo de estudo da contraposição entre modalidades históricas da pintura - revela a indisciplina da mesma, através de um comentário acerca da sua atração às práticas do espaço. Shoplifter, 2018, uma pequena pintura noturna, de recorte fauve, que representa um homem com um punhado de notas na mão e que não vai a lado nenhum porque está preso a uma panela que o prende à parede (haverá maior desfaçatez na representação autocrítica do Sísifo de 2018? Este pelo menos não tem a veleidade de pressupor que vai a algum sítio!).
“Todo os que reproduzem aquilo que os levam à criação com franqueza e autenticidade pertencem-nos.”6 A famosa resolução de Kirchner parece adequada à expressão da história que se conta. Ou histórias, pois as histórias ganham contornos erráticos porque não existe nenhuma forma mais autêntica de contar uma
história.
Magic, Untitled (20m) e Good morning! pontuam o espaço e abrem mais um manancial de pontos de contacto entre as delimitações que cada obra ocupa nesta narrativa; neste sentido podemos entender esta abordagem como um jogo que desempenha o papel de um exercício de aproximação ao mundo rápido, pela estratégia lenta do fluxo da pintura e dos seus objetos, entendidos enquanto parte de uma existência que necessariamente os transcende. Aquilo que é risível adquire a dimensão trágica do extremo, do que é delimitado e delimitável pela pintura: “Numa extremidade da imagem mental existe a estupefação pela forma, pela sua existência auto-suficiente e soberana. Na outra extremidade, existe a estupefação perante a cadeia dos laços que reproduzem na mente a fatalidade da matéria. É difícil ver esses dois extremos que sobressaem no leque do simulacro, e é insuportável vê-los simultaneamente.”7
É enfim, tudo parte de um jogo. Podemos convocar Alain Bois - que convoca Damisch – ao formular que a pintura apenas se pode libertar da armadilha paralisante do seu próprio peso histórico e da sua consequente perda de vitalidade se entrar na partida: “quem quer que esteja designado para jogar o jogo ‘pintura’, é alguém que se vê a jogar num dado momento e em circunstâncias particulares, a sua relação com o jogo de mesmo nome”».8 É assim que percorremos de regresso a exposição. Percorremos com o olhar em ricochete as obras que a vários níveis nos permitem perceber que são peças de um jogo, e que esse jogo está a ser jogado em duas frentes. Em parte já tinha começado antes do artista chegar, mas quando este chegou e se acercou da regras do jogo, o jogo mudou irreversivelmente.
O que a prática de pintura é hoje é um assunto intrincado. Pode-se, de extremo a extremo, com um sem fim de variações intermédias, explicar a hipótese de se continuar a insistir na pintura porque se está num romance indefetível com a mais primitiva noção de representação, ou porque se encara a sua possibilidade como um meio de expressão cínico numa suposta circunstância de exterioridade à sua substância artesanal. Estes extremos, que são no fundo as regiões históricas nas quais se construiu a história da arte e da pintura, clássica e moderna, são os pilares da sua existência. É na variabilidade entre as imanências do medium e as atributos da contextualidade, que se consolidam os territórios que legitimamente continuam a fazer da prática da pintura uma possibilidade, mas...
Podemos hoje afirmar que a pintura é uma prática que se salvou por ter sido ameaçada de morte e que foi a ameaça, ou as constantes notícias de que ameaças várias vinham colocar o seu lugar em causa, que verdadeiramente recordaram os criadores das suas qualidades. Richard Wollheim afirma que “a pintura apresenta variados tipos de sentido ou conteúdo, ao representar determinados objetos, pessoas, cenas e acontecimentos de uma forma mais ou menos deliberada, que por sua vez expressa o temperamento e as emoções à luz da subjetividade desse hipotético espetador interior algures num canto do mundo, cuja perspetiva e papel nesse canto do mundo é suposto nós, reais espetadores, adotarmos imaginativamente.”9 Podemos a partir desta história abreviada imaginar que a resistência da pintura se joga nesta particularidade, de ser pensada e manufaturada a partir de um sentido muito genuíno de espaço e de tempo, que assume esse canto do mundo como o recurso essencial à sua legitimidade e urgência.
1 KRACAUER, Siegfried; Calico world (1926), in The Mass Ornament: Weimar Essays; Harvard University Press, Cambridge, 1995, pág 287 (Ed. Thomas Y. Levin)
2 WALSER, Robert, Histórias de Imagens, Edições Cotovia, Lisboa, 2011, pp.75-76.
3 KOETHER, Jutta; By other means, in; f.; Sternberg Press, Berlim, 2015. pp. 41-42
4 DANTO, Arthur; Embodied Meanings, Isotypes, and Aesthetical Ideas; The Journal of Aesthetics and Art Criticism, Vol. 65, No. 1, Special Issue: GlobalTheories of the Arts and Aesthetics (Winter, 2007), pp. 121-129
5 LAWSON, Thomas; Last Exit Painting, in HERTZ, Richard; Theories of Contemporary Art; Prentice Hall, New Jersey, 1985, p. 153.
6 KIRCHNER, Ernst Ludwig; Programme of the Brücke, 1906
7 Calasso, Roberto; As Núpcias de Cadmo e Harmonia; Edições Cotovia, Lisboa, 1990. p. 136.
8 BOIS, Yve-Alain; Painting: The Task of Mourning, em Painting As Model, M.I.T. Press, Cambridge, Massachussets e Londres, 1993, p. 241.
9 HOPKINS, Robert; The Spectator in the Picture, in Richard Wollheim on the Art of Painting. Art as Representation
and Expression, CUP, Cambridge, 2001, pp.215-231. (ed. R.Van Gerwen).